domingo, 28 de outubro de 2012
Novo Código Penal, Criminologia e Política Criminal. O catedrático professor Juarez Cirino dos Santos teceu comentários, em entrevista exclusiva, sobre temas “deformados” pela opinião pública.
Considerado
um dos maiores estudiosos mundiais da criminologia crítica contemporânea, o
professor Juarez Cirino dos Santos falou à Novos Rumos e teceu severas críticas
ao projeto do novo Código Penal, que concentra, a atualmente, o trabalho de
relatores no Senado.
Sem
rodeios, Cirino disse não haver necessidade de um novo diploma que verse sobre
leis penais no Brasil. “Os convites para integrar a Comissão de
Juristas foram efetuados por políticos, segundo critérios partidários, regionais
ou profissionais”, enfatizou. Em outra via, o criminólogo falou do fenômeno
conhecido como executivização do Poder Judiciário. “Ou seja, a convocação dos
juízes para legitimar a repressão antecipada da pobreza”, criticou.
Professor
Juarez, carecemos de um novo Código Penal? O atual compilado vigente é
anacrônico, desatualizado e está em sério descompasso com os princípios
fundamentais destacados em nossa Carta constituinte?
Vamos
ser claros: não existe nenhuma necessidade de um novo Código Penal. Mas é
preciso responder por partes.
Primeiro,
a reforma da parte geral do Código Penal, onde estão os princípios de
interpretação e aplicação da lei penal, é inteiramente desnecessária: apenas
alguns ajustes na disciplina do erro de proibição e nas hipóteses de aplicação
de penas restritivas de direitos – que poderiam ser feitas por uma simples
alteração legislativa – e mais nada. Os princípios da parte geral não são
anacrônicos, nem estão em descompasso com os fundamentos da Constituição
Federal. Um exemplo pedagógico: o Código Penal alemão é de 1876, passou por
profundas transformações nesses 136 anos de vida, mas manteve a estrutura
original mediante inserções equilibradas de dispositivos e conceitos
modernizadores, sem complicar a vida dos intérpretes e aplicadores do Direito
Penal.
Segundo,
a reforma da parte especial, onde aparecem os crimes e as penas, era conveniente
do ponto de vista da incorporação da legislação extravagante, mas a codificação
dessa legislação deveria seguir princípios rigorosos, e não simplesmente
despejar no Código Penal a legislação esparsa. Assim, o Projeto perdeu a
oportunidade de fazer uma verdadeira reforma, mediante seletiva e humanista
redução de crimes, extinção de penas e ampla desinstitucionalização do sistema
penal. Do ponto de vista da Criminologia crítica, as linhas mestras de uma
reforma da parte especial seriam as seguintes: primeiro, descriminalização das
infrações penais de bagatela (crimes de ação penal privada, ou punidos com
detenção ou com multa alternativa etc.), dos crimes qualificados pelo resultado,
dos crimes de perigo abstrato etc., que devem ser expurgados do catálogo de
crimes; segundo, despenalização mediante extinção do arcaico sistema de penas
mínimas e redução das penas máximas (em especial, extirpando os crimes
hediondos), porque a pena é criminogênica e as vítimas não estão interessadas em
penas, mas em reparação do dano ou restituição da coisa, no modelo da justiça
restaurativa; terceiro, desinstitucionalização mediante extinção dos inúteis
manicômios judiciários, como fez a Itália com a Lei Basaglia, assim como
mediante revitalização do sursis e do livramento condicional como fases de
execução das penas fora das prisões, plenamente compatibilizáveis com as
hipóteses de regime aberto – ao invés de extinguir esses substitutivos penais,
como fez o Projeto.
Porque
o senhor não foi convidado a integrar a comissão que elaborou o anteprojeto do
Código Penal? A criminologia crítica, matéria que o senhor domina como poucos,
poderia ter sido fonte de contribuição para o anteprojeto? De qual
forma?
Os
convites para integrar a Comissão de Juristas foram efetuados por políticos,
segundo critérios partidários, regionais ou profissionais, recaindo sobre
pessoas destacadas pela atuação no sistema de justiça criminal (Magistrados,
membros do Ministério Público, Advogados), mas não incluiu nenhum grande
penalista (como Juarez Tavares, UERJ), nenhum grande especialista em política
criminal (como Nilo Batista, UERJ e UFRJ) e, sobretudo, nenhum grande
criminólogo (como Vera Andrade, UFSC e Ana Lucia Sabadell, UFRJ). Não posso
dizer porque não fui convidado, mas esclareço: se fosse convidado, não
aceitaria. Afinal, minha concepção de política criminal estaria em franco
antagonismo com a ideologia punitiva dominante na Comissão de Juristas, com uma
ou outra exceção. Seria um esforço inútil.
A
Criminologia crítica poderia contribuir mostrando a necessidade de um Direito
penal mínimo comprometido com a proteção de bens jurídicos individuais (vida,
liberdade, integridade, sexualidade etc.), reduzindo a destruição social
produzida pelo sistema penal, cuja função real é garantir a desigualdade social
nas sociedades capitalistas. Mas essa contribuição ficaria reduzida ao nível do
discurso, tendo em vista o caleidoscópio ideológico da Comissão de Juristas. Na
prática, o resultado seria o mesmo: um Projeto construído na perspectiva de um
Direito Penal máximo, bem na linha das políticas autoritárias e repressivas do
capitalismo neoliberal.
O
senhor participou no mês de julho de um encontro da Associação dos Magistrados
do Paraná que debateu a política criminal. O senhor gostou dos debates? Como
colocar em prática o que foi tratado no encontro?
Gostei
muito do encontro e dos debates. O Colóquio de Criminologia e Política Criminal
da AMAPAR, realizado em Foz do Iguaçu, se caracterizou pelo elevadíssimo nível
científico e político-criminal das conferências e debates, com a participação de
especialistas de renome universal – como Sebastian Scheerer e Jörg Stippel, da
Alemanha – e a ampla contribuição crítica dos magistrados paranaenses, sob a
direção competente de Fernando Ganem e a liderança de fato de Luiz Fernando
Keppen. A realização prática dos temas tratados no encontro passa pela reflexão
crítica dos magistrados, com o desenvolvimento de atitudes comprometidas com a
democracia e os Direitos Humanos – aliás, como ficou amplamente demonstrado no
Colóquio –, que devem marcar a práxis judicial no mundo contemporâneo.
Qual
deve ser o papel do juiz para a efetivação de políticas
criminais?
A
sociedade brasileira precisa de Juízes que assumam a garantia constitucional de
independência política em face dos demais poderes e garantam os princípios do
Estado Democrático de Direito no processo penal.
A
independência política dos Juízes deve ser exercida em duas direções: primeiro,
rejeitar a cooptação pelo Executivo para seus programas de política criminal,
que exigem prisões temporárias, prisões preventivas, interceptações telefônicas
e outras formas de vigilâncias sigilosas – fenômeno conhecido como
executivização do Judiciário, ou seja, a convocação dos Juízes para legitimar a
repressão antecipada da pobreza; segundo, assumir a função original de controle
dos demais poderes: do Legislativo, mediante o chamado controle difuso e
concentrado de inconstitucionalidade das leis penais, um fenômeno cada vez mais
comum na globalização neoliberal; e do Executivo, na sua violência aberta contra
o povo, com suas invasões bélicas de favelas e bairros pobres e matança em massa
da população marginalizada. Nunca o povo precisou tanto de bons Juízes.
A
garantia dos princípios do Estado Democrático de Direitos tem por objeto geral
os princípios do Direito Penal, como legalidade, culpabilidade, lesividade,
proporcionalidade e humanidade, e por objeto específico os direitos do acusado
no processo legal devido, como o contraditório, a ampla defesa e a presunção de
inocência, com sua dimensão processual do in dubio pro reo.
O
senhor considera que atualmente vivemos a era do populismo penal? O quanto isso
é gravoso e interfere na política criminal adotada no País? Os três poderes
andam em descompasso no investimento, criação e aplicação de políticas
criminais?
De
fato, hoje vivemos uma era de intenso populismo penal, promovido e estimulado
pelos meios de comunicação de massa, que condicionam e deformam a opinião
pública com a ideia falsa de que os problemas sociais podem ser resolvidos com
penas criminais – e não com políticas públicas que promovam os direitos
fundamentais da população oprimida e reprimida da periferia. O resultado é o
clamor punitivo dos segmentos mais massacrados e embrutecidos da população, que
desconhecem a origem de sua vida de miséria e privação, mas votam em políticos
oportunistas e demagogos que prometem mais penas, mais polícia, mais prisões – e
exigem mais dureza e maior celeridade do Sistema de Justiça Criminal. Assim, a
ideologia punitiva toma conta dos poderes Executivo e Legislativo, e encontra
eco no Judiciário, cada vez mais aturdido por discursos repressivos de todos os
lados. Nesse contexto, o Projeto de Reforma do Código Penal é a mais escrachada
manifestação desse populismo penal. Não obstante, tem alguns méritos: a) a
descriminalização da droga, no aspecto de posse (ou de cultivo de plantas) para
consumo próprio; b) a descriminalização do aborto, em várias hipóteses
importantes, como o aborto por vontade da gestante, até a 12a semana de
gestação, se ausente condições psicológicas para a maternidade; c) a
descriminalização da eutanásia em pacientes terminais, como ajuda passiva
consentida pela vítima. Mas esses pequenos avanços não compensam os defeitos.
Melhor deixar tudo como está.
Fonte:
Entrevista concedida a Rômulo Cardoso, editor da Revista Novos Rumos, publicação
oficial da Associação dos Magistrados do Paraná e Judicemed, edição nº 176,
2012.