GUIDO ARTURO PALOMBA
Banalização dos crimes violentos
Referência na Psiquiatria Forense, Guido Arturo Palomba dedica quase quatro décadas de sua vida à definição de perfis psicológicos de criminosos. Nesta entrevista, ele aponta, entre outros aspectos, o despreparo dos profissionais que atuam na área
Por: Lucas Vasques | Fotos: Fabio Hurpia
A descrição dos chamados crimes hediondos, praticados com requintes de perversão e crueldade, povoa os noticiários e deixa a sociedade atônita. A partir daí, torna-se imperiosa a participação desses especialistas na busca incessante por explicações para essa escalada de violência sem limites.
Entretanto, não é apenas na área criminal que a função do psiquiatra forense se faz fundamental. Em intrincados processos cíveis, o especialista tenta identificar possíveis deformidades mentais em pessoas envolvidas em crises matrimoniais ou guarda de filhos, além de litígios provocados por divisão de heranças.
Guido Arturo Palomba é um dos psiquiatras forenses mais conceituados do Brasil. Dedica sua vida a colaborar no esclarecimento de patologias psíquicas que justifiquem, ou pelo menos deixem mais claro, o que leva pessoas a cometerem ações delituosas de gravidade inexplicável.
O especialista nasceu em São Paulo, no dia 3 de outubro de 1948, e se formou em 1974, na Faculdade de Ciências Médicas de Santos. Com larga experiência na área, é a principal referência no setor para juízes, advogados e imprensa. Autor de mais de 10 mil laudos psiquiátricos sobre criminosos e do livro Tratado de Psiquiatria Forense, Civil e Penal (Atheneu, 2003) criou o termo “condutopata” por acreditar que “a patologia está na conduta”.
Guido Palomba tem ideias firmes e não se furta a comentar sobre qualquer assunto relacionado à sua área de atuação: “O despreparo na Psiquiatria Forense é generalizado”, avalia, com a credibilidade originária de seu conhecimento.
Como você define a psiquiatria forense e desde quando começou a ser utilizada?
Guido Arturo Palomba – A Psiquiatria Forense é a aplicação dos conhecimentos psiquiátricos às causas judiciárias. É usada quando há dúvida sobre a sanidade de algum indivíduo. O juiz precisa saber e, por isso, nomeia um especialista. Posso dizer também que a Psiquiatria Forense é a articulação do discurso médico com o discurso jurídico. É tão antiga quanto o Direito. Já constam informações sobre o tema no Código de Hammurabi, que data de 1.800 a.C. Lá, aparecem as primeiras articulações entre doença mental e disposição legal. Nesse código também está escrita a famosa Lei de Talião: olho por olho, dente por dente.
Você avalia como eficiente a formação dos profissionais que exercem essa atividade?
Palomba – Costumo dividir essa questão em dois aspectos: até os anos 2000 e depois dos anos 2000. Antes, a Psiquiatria Forense era a própria elite da Psiquiatria, contando com grandes profissionais. A partir de 1985, mais ou menos, começou o declínio da atividade, culminando com a grande decadência da Psiquiatria em termos mundiais. Isso se deve à proliferação desenfreada da indústria farmacêutica, com o uso indiscriminado de remédios, especialmente os antidepressivos. Hoje, a situação funciona mais ou menos assim: a pessoa tem um cachorro e ele morre. Nada mais natural do que ela ficar triste. O problema é que se for consultar um profissional é capaz de sair do consultório com um diagnóstico de transtorno bipolar. Então, o dito ‘especialista’ receita as famosas pílulas da felicidade.
Palomba – Quando há dúvida a respeito da sanidade de um indivíduo, o juiz manda um perito examiná-lo. O profissional avalia sua imputabilidade, ou seja, descobre se quem praticou o ato entendeu o que estava fazendo. Se for detectado que o autor não é normal, passa a ser considerado um doente criminoso. O juiz, então, manda o malfeitor para um manicômio judicial. Posso citar dois exemplos de situações que demonstram essa ligação: uma pessoa prepara um testamento e morre. Um dos herdeiros se sente prejudicado e alega que o parente era doente mental à época em que elaborou o documento. O perito, por ordem do juiz, realiza uma perícia póstuma retrospectiva. Sempre se chega a uma conclusão segura. No caso de uma separação de casal, um acusa o outro de ser louco. O perito examina ambos e descobre qual dos dois tem condições de assumir a guarda dos filhos menores.
Você poderia revelar alguns erros de avaliação em processos criminais que viu durante sua trajetória?
Palomba – Conheço alguns erros crassos. Um dos mais emblemáticos é o do bandido da luz vermelha. Ele ficou recluso durante 30 anos por medida de segurança. Após esse período, foi dado como normal por um perito. Resultado: foi morto em legítima defesa, pois atacou uma pessoa. Outro caso ocorreu com o monstro da Cantareira. Ele também foi considerado normal. Posto na rua, cometeu dois homicídios. Teve ainda o monstro do Trianon, que matava homossexuais na década de 1980. Foi colocado na rua e assassinou dez pessoas depois disso. E posso relembrar a história de Matheus Meira, aquele rapaz que metralhou e matou pessoas dentro de uma sala de cinema em um shopping. Ele, claramente, não é normal. Mas foi considerado assim e condenado. Passou dez anos na prisão comum e está prestes a sair. A possibilidade de reincidir é total.
Você acredita que os peritos deveriam ser punidos, em casos de erros graves?
Palomba – Não existe punição. Mas, na minha concepção, é um erro médico e deve ser tratado como tal. O psiquiatra deveria ser denunciado ao Conselho Regional de Medicina. Depois de um processo amplo de defesa, se ele for considerado culpado, deve sofrer as punições. Afinal, devido a esse erro, vidas foram ceifadas.
Palomba – Isso é um problema grave. O juiz não tem conhecimento específico sobre a matéria e, por isso, nomeia um profissional de confiança, teoricamente habilitado para exercer a função. Ele pode rejeitar o laudo, mas dificilmente isso acontece. O que ocorre, às vezes, é que o juiz é induzido ao erro por um laudo equivocado do perito.
Mas o juiz também pode se apresentar despreparado?
Palomba – O despreparo nesta área é generalizado. Isso porque não se ensina Psiquiatria Forense nas faculdades de Direito e de Medicina. Em determinadas situações, os casos são claros, mas, devido a uma argumentação primária, são ignorados. Exemplo: alguns usam a tese de que se o sujeito planejou o crime é sinal que ele não apresenta problemas mentais. Não é verdade. Como costumo dizer, louco não é burro. Ele pode planejar a ação e, mesmo assim, ser doente. É o caso de premeditação mórbida, que tem como escopo final a prática do crime.
Palomba – Acredito que a defesa não procura a insanidade como estratégia do jeito que deveria. Porque muitos doentes mentais são defendidos como se fossem normais mentalmente. Isso evita a aplicação da medida de segurança, que, embora tenha um prazo inicial menor para ser cumprido, não tem um término definido, o que pode representar um período de encarceramento longo. Já o Ministério Público também não pede a insanidade, porque o prazo inicial máximo de três anos, que pode ser prorrogado, soa como uma derrota, pois a pena corporal comum tem chances de chegar a mais de 100 anos, embora não possa ser cumprida. Volto a citar o caso do Matheus Meira, condenado a 136 anos de prisão comum. Essa pena é mentirosa. Passou dez anos e está prestes a voltar ao convívio social. Se ele tivesse sido considerado insano, estaria em um manicômio judicial e dificilmente sairia em pouco tempo.