Entre os anos 1980 e final dos anos 2000, Hayne foi praticamente o único responsável pela área de patologia forense do Mississippi, realizando milhares de autópsias e entregando suas descobertas em todo o Estado como um perito em casos civis e criminais. Durante a maior parte desse tempo, Hayne realizou cerca de 1.700 autópsias anualmente, mais de quatro por dia e quase sete vezes o número máximo de casos recomendados pela Associação Nacional de médicos legistas.
Durante os últimos meses, em tribunais do Mississippi, quatro novas petições foram discretamente apresentadas em nome de pessoas presas, alegando que foram injustamente condenadas com base em testemunhos de Hayne. Cerca de outras dez são esperadas nas próximas semanas, incluindo três por parte de detentos do corredor da morte.
Os casos, com base em novas informações obtidas como parte de um processo encerrado na última primavera, acusam Hayne de ter realizado "inúmeras interpretações equivocadas" sob suas qualificações como patologista forense. Eles dizem que em seus testemunhos ele propôs teorias que estão muito distantes da ciência forense padrão. E sugerem que os funcionários Mississippi ignoraram esses problemas, e em vez disso apoiaram o negócio prolífico de Haynes.
Para muitos em todo o Estado, a era Hayne é considerada finda e quaisquer problemas corrigidos. Em 2008, em meio à controvérsia crescente, o Estado cortou as ligações com Hayne, que até hoje insiste que foi tratado injustamente. Funcionários do Mississippi, desde então, não mostraram quase nenhuma inclinação para rever seus casos passados.
As ações recentes sugerem que em apenas um número limitado de casos o veredicto mudou por causa do testemunho de Hayne. Mas, sem nenhuma revisão sistemática, este número continua indeterminado.
"Há centenas de casos que precisam ser reconsiderados", disse o Dr. James Lauridson, ex-médico legista do estado do Alabama, que deu um depoimento em um dos casos recentemente arquivados. Lauridson disse que Hayne foi um exemplo extremo de um problema comum: um analista forense com treinamento inadequado que gozou de respeito demais nos tribunais.
"Depois de fazer isso por muito tempo, suas opiniões inicialmente hesitantes se tornam muito fora do comum", disse Lauridson. "Foi isso o que aconteceu com ele."
Hayne foi marginalizado por funcionários do Estado depois que suas análises – e as de um de seus mais estreitos colaboradores – levaram a várias condenações por homicídio que mais tarde foram derrubadas ou canceladas. Mas ele insiste que seu trabalho tem sido intencionalmente distorcido pelos críticos.
"Eu não acho que fui tratado de forma justa", disse ele no mês passado em sua casa num condomínio fechado com vista para a Represa Ross Barnett. "É assim que você trata as pessoas depois de 20 anos trabalhando como um cão?"
Médico e patologista, Hayne, hoje com 71 anos, começou a fazer autópsias no Mississippi no final de 1980, servindo brevemente como médico legista interino do estado embora ele não fosse, como a lei estadual exigida, certificado em patologia forense. De 1989, quando deixou o cargo interino, até 2010, o cargo de legista ficou vago por exceto cinco anos. Hayne, trabalhando terceirizado, quase sempre sozinho, preencheu o vazio.
Segundo seu próprio relato, ele fez até 1.700 autópsias em alguns anos, além de ter sua própria clínica de patologia. O Dr. David Fowler, legista chefe do Estado em Maryland e ex-presidente do comitê de normas para a Associação Nacional de Médicos Legistas, disse que o número está "além do defensável."
Hayne disse que os médicos legistas nomeados pelo Estado simplesmente não tinham a motivação que ele tinha enquanto empresa terceirizada que ganhava por taxa, e nem a sua ética de trabalho. "Quantas autópsias o que eles poderiam fazer?", disse. "Eles poderiam fazer uma ou 500, que recebiam o mesmo salário. Existe algum incentivo para assumir uma carga tão pesada?"
Esse incentivo é a questão que está no cerne dos desafios apresentados em nome de presos nas últimas semanas, a maioria deles por parte do Projeto Inocência Mississippi. Os casos dos arquivos não são claros, e em todos eles há provas circunstanciais sugerindo culpa e inocência. Mas o testemunho Hayne foi fundamental.
Em um caso, Hayne realizou uma autópsia de um menino e concluiu que ele havia sido sufocado. Algumas semanas depois que o garoto foi enterrado, seu irmão de 3 anos de idade disse à polícia que ele tinha sido assassinado pelo namorado de sua mãe. Funcionários exumaram o corpo, e Hayne fez um molde do rosto do menino. Ao comparar suas notas iniciais das feridas no rosto com o gesso, Hayne testemunhou que descobriu que era provável que o menino tivesse sido sufocado por uma grande mão masculina. O namorado foi condenado.
"Eu vi um caso muito semelhante a esse no 'Law & Order: SVU'", disse o Dr. Andrew M. Baker, presidente da associação de médicos legistas e médico legista chefe de Hennepin County, Minnesota. "Eu nunca ouvi falar disso na vida real." Baker disse que não só a técnica foi inédita, mas também a capacidade de especular o tamanho da mão ou o gênero da pessoa a partir desse tipo de ferimento.
Hayne sugeriu que ele estava apenas sendo inovador. "Talvez devêssemos ter publicado", disse ele ao ser lembrado do caso.
O Projeto Inocência vem tentando examinar casos passados nos quais o testemunho de Hayne foi fundamental, enquanto funcionários do Estado não demonstraram nenhuma inclinação para pedir uma revisão formal. (Radley Balko, repórter do The Huffington Post, também investigou vários casos).
Em 2009, Hayne processou o Projeto Inocência por difamação, e na primavera passada o grupo pagou uma quantia de US$ 100 mil num acordo. Funcionários Projeto Inocência disseram que o motivo era de seguro, embora o advogado de Hayne ter dito que se tratava de vingança.
Mas ao se preparar para combater a ação, os advogados do Projeto Inocência disseram que descobriram novas informações. Eles disseram que encontraram detalhes sobre o histórico acadêmico de Hayne e qualificações que contradizem significativamente suas próprias declarações, muitas vezes feitas sob juramento.
Eles também encontraram uma proposta de 1992 que envolvia Hayne, escrita por um funcionário sênior do Estado. Hayne estava realizando 80% das autópsias do Estado, dizia o memorando, e provavelmente continuaria fazendo isso mesmo que um novo médico legista fosse nomeado. O Estado poderia poupar em salários e custos administrativos dando a Hayne o título, mas deixando que ele continuasse cobrando US$ 500 por autópsia como uma empresa privada.
Embora o plano tenha sido engavetado, e o cargo tenha ficado vago durante a maior parte dos próximos 15 anos, Hayne manteve seu negócio de alto volume e acabou por ser autorizado a usar o título de patologista-chefe do Estado.
Tucker Carrington, diretor do Projeto Inocência Mississippi e professor da Faculdade de direito da Universidade do Mississipi, disse que este arranjo explica porque Hayne pode dominar o campo por tanto tempo.
"O que Hayne fez foi agir como ninguém poderia ter previsto, que não é como um patologista objetivo, mas como alguém que está no mercado", disse Carrington. "O Estado deu a ele esta oportunidade e sua bênção."
Essa bênção foi revogada em 2008, quando, apesar de alguma oposição, o comissário de segurança pública do Mississippi retirou Hayne de uma lista de patologistas forenses aprovados. O Estado contratou um legista chefe em 2010.
Mas muitos médicos legistas e advogados distritais continuam firmes defensores de Hayne e seu trabalho; durante anos, alguns apontam, ele foi o único patologista disponível.
"Tenho certeza que há muitas pessoas que não gostam de Hayne, mas do ponto de vista da promotoria, não conheço ninguém que não gostava dele", disse John T. Kitchens, promotor e ex-juiz do tribunal de circuito. "Ele sempre foi muito solícito e útil para a aplicação da lei. E trabalhava o tempo todo."
Em uma conversa que versou desde a queda da república romana até a loucura da guerra do Vietnã, Hayne permaneceu inflexível. Ele disse que suas análises nunca se afastaram das normas aceitáveis da ciência, que ele testemunhou sem ter intenções veladas e que seus resultados estavam sendo deliberadamente mal interpretados ou injustamente confundidos com o trabalho errôneo de outros.
"Eu acho que eles foram minuciosos, completos e resistem ao teste do tempo", disse Hayne sobre seus relatórios.
O Dr. Lloyd White, que foi legista chefe do Estado do Mississippi entre 1989-1992, disse que os problemas relativos Hayne, embora extremos, estão enraizados na natureza do sistema no qual ele trabalhava. Tais problemas, segundo ele, não são exclusivos do Mississippi, e são passíveis de existir porque o testemunho científico é muitas vezes visto com reverência acrítica e porque as pessoas afetadas pela sua má utilização normalmente gozam de pouco apoio ou simpatia.
"Um promotor uma vez me disse: 'Esses caras podem não ter feito isso, mas eles são maus e têm de ir para a prisão", disse White. "A coisa toda desce pelo ralo a partir daí. E nesse ínterim você é obrigado a se perguntar quantas pessoas que não tiveram um julgamento justo foram parar na prisão."
Tradutor: Eloise De Vylder