A inviolabilidade do local do crime
Os locais de crimes na Região Metropolitana de Belém se constituem numa verdadeira “Torre de Babel” com interesses de pessoas que nada tem haver com o momento, mas que movidos por uma curiosidade mórbida, mesmo antes da chegada da perícia, tornam em 90% os locais inidôneos.
Especialistas concluem que na maioria dos casos, o cadáver da vítima, quase sempre disposto e exposto de forma desagradável, produz um forte impacto psicológico em todos os atores que acabam protagonizando uma cena inusitada, para quem de longe observa.
Neste caso, se aliam os que lá estão presentes, mas não deveriam estar (curiosos, crianças), os que estão presentes por força do ofício (policiais, peritos, técnicos e imprensa) e os que deveriam estar presentes (testemunhas, família), mas em geral, para não se comprometer, não estão.
Renomados juristas classificam por “crime” toda a ação ou omissão ilícita, culpável e tipificada na norma penal, existindo o que eles chama de “Triângulo do Crime”, a saber: a vítima, o criminoso e o local em que se desenrolou o crime.
No entender do jurista Eraldo Rabello, um local de crime “se constitui em um livro extremamente frágil e delicado, cujas páginas, por terem a consistência de poeira, se desfazem, não raro, ao simples toque de mãos imprudentes, inábeis ou negligentes, perdendo-se desse modo para sempre, os dados preciosos que ocultavam à espera da argúcia dos peritos”.
Uma das grandes preocupações de peritos criminais é com relação a dois segmentos do local de crime classificados como “corpo de delito” e “vestígios”. O corpo de delito é para a perícia o elemento principal de um local de crime onde demandam os “vestígios”, que certamente vão convergir para as evidências consideradas importantes para o início das investigações.
No local de uma perícia criminal é comum se ouvir palavras como “vestígios”, “evidências” e “indícios”, todas consideradas de grande importância para se definir o agente causador de um crime e, por esta razão, devem estar preservadas até a chegada do perito responsável pela coleta.
A situação é uma exigência legal do Código de Processo Penal e modificações introduzidas pela Lei 8.862/94, conforme podemos verificar no artigo 6º, inciso I: “Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais”.
Uma das maiores dificuldades dos peritos criminais em nosso Estado acaba sendo inidoneidade dos locais de crime. No entanto, existe um procedimento padrão que tem como base o primeiro policial que chegar à ocorrência, isolar o local do crime.
Os demais policiais preservam o local até a chegada da policia judiciária, que solicita a perícia e garante a segurança dos peritos, apreendendo objetos que possam estar relacionados ao crime e, finalmente, os peritos criminais, que após a perícia juntam todas as informações que farão parte do inquérito policial.
O isolamento adequado representa um dos elementos mais importantes para a investigação criminal. Qualquer alteração, por mais ínfima que seja, deve ser evitada, fato que vai dar condições para que os peritos cheguem a uma conclusão sobre o que ocorreu no local do crime.
UM LOCAL PARA POUCOS
Durante seis meses, nossa equipe acompanhou uma sequência de homicídios e acidentes de trânsito com vítimas fatais, verificando as normas legais que permeiam a atividade dos peritos criminais que em muitos dos casos devido à inidoneidade do “local de crime” apenas trabalham com o básico.
Policiais militares argumentam que têm dificuldades em manter idôneo o local de crime, uma vez que ao chegarem à situação, dezenas de pessoas já macularam o local. “Quando nós chegamos ao local do crime pessoas alheias à situação e os próprios familiares já tocaram no corpo, retiraram documentos e indícios que seriam úteis à perícia”, afirma um policial militar ouvido pelo DIÁRIO.
Mas a situação grave acontece nos acidentes de trânsito com vítima fatal. O fato considerado como “acidente” pode na realidade ter sido um suicídio ou homicídio. Daí a necessidade do isolamento abranger os veículos envolvidos na ocorrência, assim como as vítimas.
A técnica prevê a preservação das marcas no leito da via, especialmente as marcas de frenagem que podem dar uma ideia aproximada da velocidade em que os veículos trafegavam durante o acidente sendo aconselhável dispor de sinalizadores adequados para preservar todos os vestígios da ocorrência e até, se for o caso, a interrupção completa do trânsito em toda extensão da via.
Um dos principais problemas com vítima fatal acontece em rodovias de grande movimentação como a BR-316 e Alça Viária e, neste caso, para a segurança dos agentes públicos e da perícia é autorizado “desfazer” o local, removendo tanto vítima como veículo estando este ato amparado pela Lei 5970.
Local de crime não é uma festa popular
O corpo e os objetos que fazem parte da cena do crime são intocáveis até a chegada da equipe do Instituto de Criminalística, que faz a perícia no ambiente e remove o cadáver. Este processo, em geral, nas grandes cidades, costuma demorar mais de uma hora. Tempo suficiente para que o local se torne espetáculo para pessoas curiosas que nada tem haver com a situação.
O DIÁRIO tentou observar, durante 90 dias, o perfil de pessoas que vão para um local de crime, principalmente na Região Metropolitana de Belém. Em geral, são moradores das redondezas, mas há também curiosos que vêm até de outro bairro, distante três quilômetros.
Em um dos casos, a reportagem teve grande dificuldade de estacionar o carro próximo ao ocorrido, devido à grande quantidade de pessoas. Entre os espectadores, principalmente em crimes depois das 23h, é comum encontrar até crianças de colo nos braços de mães, que se acotovelam tentando encontrar um melhor ângulo de observação.
A “festa” que se forma em redor do cadáver somente se dispersa quando o carro do Instituto de Criminalística deixa o local. Em um homicídio no bairro do Jaderlândia, em Ananindeua, uma cena chamou atenção das equipes de reportagem e agentes públicos. Um grupo de cinco crianças, na faixa entre 6 e 10 anos, todos munidos de celulares, fotografavam e filmavam a cena. O fato passou a ser contido por delegados da Divisão de Homicídios, que orientados, chegam até a ameaçar de prisão pais que teimam em deixar seus filhos nas cenas de violência.
Segundo a Polícia Civil, o resultado da investigação depende inicialmente do trabalho que é feito pelo Instituto de Criminalística, que não pode ser prejudicado pela alteração da cena do crime. “A investigação é um quebra-cabeça a ser montado, onde ali você tem vestígios, muito deles coletados no local do crime, como um projétil de arma de fogo, um estojo, um cartucho, uma arma utilizada, saliva, sangue, sêmen, fio de cabelo, entre tantas evidências”, afirma uma delegada.
Uma situação prejudicial é com relação a curiosos e até mesmo policiais de folga que, ao passar por um local de crime, querem ver o rosto ou marcas de tatuagens na vítima. A imprensa também não passa despercebida devido a forma como atua. “Os jornalistas, apesar de estarem a trabalho, também não deveriam ficar na área isolada, como costuma ocorrer”, reclama um perito do Instituto de Criminalística.
(Diário do Pará)