Resumo
Este trabalho tem como principal objetivo a discussão sobre a
clínica dos transtornos de personalidade. A partir da Terapia Cognitiva
Fenomenológica propõe-se aqui uma nova visão sobre as características,
expectativas e o tratamento dos transtornos de personalidade. Uma das ideias
principais aponta para a consideração de características frequentes em
indivíduos com este diagnóstico: rigidez patológica de pensamento, resistência à
mudança e dificuldades interpessoais. Com a proposta da Terapia Cognitiva
Fenomenológica, salientamos a importância da vinculação terapêutica como
possibilidade para a construção de caminhos diferentes dos construídos pelo
paciente até então. Trazemos também o questionamento da importância clínica da
classificação dos transtornos de personalidade, posto que na experiência
clínica, isso pode ser um dado menos importante do que o funcionamento global do
paciente. Propõe-se aqui a Terapia Cognitiva Fenomenológica como uma das opções
eficazes para o tratamento dos transtornos de personalidade justamente pela
pouca exigência em relação a metas e duração do trabalho terapêutico.
Descritores: Terapia Cognitiva Fenomenológica, Transtornos
de Personalidade, Psicoterapia.
Introdução
Uma das principais e mais frequentes dificuldades em
psicoterapia é o tratamento dos transtornos de personalidade. Esses são chamados
muito comumente de casos complicados, ou casos mais difíceis. A verdade é que
eles realmente tendem a se tornar casos clínicos muito complexos, caso não seja
observada uma estratégia singular para a condução do tratamento.
O terapeuta menos avisado, frequentemente comete
o erro de tentar aplicar técnicas ou enfoques já prontos nos casos que não
respondem a esse tipo de abordagem. Vale ressaltar que não é a abordagem teórica
que se torna um problema, mas sim, o uso que o terapeuta faz da abordagem, seja
ela qual for.
Neste trabalho, defendemos, de acordo com os
pressupostos da terapia Cognitiva Fenomenológica, que o processo terapêutico
tenha por base a investigação de uma vinculação possível entre terapeuta e
paciente. A partir de então, caso tal vinculação seja possível, pretendemos
discutir como ela pode se dar e o que se pode fazer para que o paciente consiga
atingir algumas mudanças saudáveis para sua vida. Caso nos deparemos com a
impossibilidade de uma vinculação com um paciente que apresente tais
características, cabe ao terapeuta descobrir o que pode fazer em relação ao
problema.
Para ilustrar as reflexões propostas, trazemos
para discussão dois exemplos clínicos, com o diagnóstico de Transtorno de
Personalidade feito por mais de um médico psiquiatra em ambos os casos.
Apresentamos também, para fundamentar a dificuldade clínica que os casos de
transtorno de personalidade proporcionam ao terapeuta, as concepções teóricas da
Terapia Cognitivo-Comportamental dos transtornos de personalidade.
Casos clínicos
Caso F.
Paciente do sexo feminino, casada, 46 anos, mãe de dois
filhos, um com 8 e outro com 15 anos.
F. chega ao consultório cerca de quinze minutos
atrasada e muito nervosa, falando em tom de reclamação sobre o local, as
dificuldades para estacionar e a impossibilidade (sic) de chegar no horário
marcado para o atendimento.
F. relata que seu caso é mito difícil e que ela
vai me dar muito trabalho. Diz também que sabe que eu não vou conseguir
ajudá-la, e em pouco tempo vai começar a me detestar e tornar a minha vida um
inferno. Já passou por todos os tipos de terapia e todos terminam do mesmo
jeito, pois nada funciona com ela.
Apesar da postura ameaçadora de início, os
primeiros atendimentos com F. vão transcorrendo no que se pode chamar de
normalidade para um ambiente terapêutico. Algumas queixas sobre a relação com o
marido, sinais de depressão e ansiedade. Além de algumas evitações fóbicas, em
relação a insetos e elevadores.
No primeiro mês, estabelecemos o contrato de
trabalhar para que sua depressão pudesse diminuir. Um novo esquema medicamentoso
começava a fazer efeito, depois de duas semanas de uso, F. dava sinais de
eutimia.
Nesse momento, começamos a trabalhar algumas metas que ela
trouxera como prioritárias para o tratamento, no esquema da Terapia
Cognitivo-Comportamental. F. desejava maior intimidade com os filhos, que
segundo ela a tratavam como louca. Como já houvesse estudado a Terapia
Cognitivo-Comportamental, fomos procurando estratégias que poderiam ser eficazes
para o seu quadro. F. possuía um QI acima da média e frequentemente falava sobre
isso, como se fosse um dado irrelevante para ela. Mas o fato de mencionar sua
inteligência a cada encontro me fazia acreditar justamente no oposto.
As primeiras estratégias comportamentais que
utilizamos foram relacionadas às habilidades sociais que F. reconhecia não
aprender, apesar de “tentar com todas as forças” (sic). Com pouco treino, era
como se ela já dominasse teoricamente o assunto, mas sempre que combinávamos uma
aplicação do treinamento feito no consultório, algo acontecia. O treinamento de
habilidades sociais logo deixou de ser uma meta.
Pouco tempo depois, F. chegou ao consultório
dizendo-se muito deprimida e insatisfeita com tudo, inclusive comigo não
conseguindo melhorar em nada e até piorando em alguns aspectos. Logo percebi que
sua intenção era reclamar de mim e não das outras coisas que causavam
insatisfação. Em duas sessões, percebi que estivera muito chateada à época de
minha ausência, por problemas da saúde. A partir de então, F, começou a me
telefonar com frequência, reclamando asperamente quando eu não podia atender. A
vinculação parecia estar sendo testada por ela. Quando sinalizei essa
possibilidade, F. se tornou arredia e disse que não queria mais continuar a
terapia e que jamais voltaria. A isto eu respondi que não desmarcaria a sessão
seguinte, a menos que ela me confirmasse a desmarcação.
Na semana seguinte, F. faltou ao encontro, depois
de ter confirmado sua presença com a secretária na véspera. Percebendo que
poderia ser uma falta sintomática, liguei para a paciente três vezes por três
dias seguidos e ela não me atendeu. Deixei um recado em sua caixa postal,
dizendo que manteria o horário por mais uma semana e estaria esperando por ela.
Caso ela faltasse mais uma vez sem entrar em contato, eu consideraria desfeito o
nosso contrato e ela teria que ligar para marcar um novo horário de acordo com
minha disponibilidade.
Na semana seguinte, F. foi à clinica onde era
atendida por mim, pediu que eu a atendesse naquele horário, pois ela estava se
sentindo muito deprimida
.
Quando soube que eu não estava trabalhando naquele dia, começou a gritar e teve
que ser contida pelo médico da clínica, que também era o seu médico. Com a
chegada do médico, e com a atenção dada a ela, seus movimentos agressivos
cessaram imediatamente (segundo relato do médico). Saiu da clínica dizendo que
iria dar queixa do meu nome junto ao CRP e ameaçando a clínica de fechamento,
caso não me mandassem embora.
F. realmente não voltou mais, e encerrou também o
tratamento médico. O médico psiquiatra teve alguns contatos com a paciente e
informou que ela estava estabilizada, mas mesmo assim, com muitos problemas
familiares.
Discussão
Durante algum tempo, questionei o diagnóstico de transtorno
de personalidade Borderline, que fora concedido pelo primeiro psiquiatra de F..
No entanto, após as semanas em que me vi emaranhado nas confusões que a paciente
causava, em que pude constatar a ineficácia de qualquer estratégia
cognitivo-comportamental que se tentasse, resolvi aderir ao diagnóstico, ainda
que tardiamente.
Minha relutância em aceitar o diagnóstico
provavelmente teve a ver com a forma como o diagnóstico de transtorno de
personalidade é encarado mesmo no meio clínico. Aos poucos, fui me deixando
levar por uma sensação de incompetência e de falta de recursos para ajudar
alguém que precisava.
Muito mais tarde, com o início de meus estudos
sobre a Psicopatologia Fenomenológica pude avaliar essa questão por outro
ângulo. A Fenomenologia aplicada à Psicologia Clínica e à Psicoterapia nos
auxilia fornecendo, entre outras coisas, material diferenciado para o
diagnóstico: as sensações que o paciente nos causa.
Sentir que não há estratégia que funcione, sentir
que não podemos e não poderemos ajudar, sentir que não há o que se possa fazer
pela cura de tal paciente são sensações que justamente os pacientes com algum
transtorno de personalidade nos causam. Aos poucos fui observando que as formas
de diagnosticar e de seguir à risca um tratamento fornecido pelos livros,
frequentemente fogem do que realmente acontece. O trabalho clínico está
justamente na utilização da sensibilidade do terapeuta para escolher a melhor
forma de se comunicar com um determinado paciente. Para o caso dos transtornos
de personalidade.
Parece-me que o primeiro passo para que se faça
um bom trabalho clínico com transtornos de personalidade é reconhecer as
limitações da terapia. Segundo Young (2003), três características são geralmente
encontradas em pacientes com transtornos de personalidade: rigidez, evitação e
dificuldades interpessoais.
Para esse mesmo autor, a Terapia Cognitiva de
curto prazo pode não ser bem sucedida caso não se adapte à forma de funcionar
dos pacientes. Lembremos que para que a Terapia Cognitiva funcione, o paciente
deve apresentar algum nível de cooperação, o que pressupõe alguma flexibilidade
e condição de olhar para o outro. Tais características estão quase que na
totalidade dos casos, ausentes nos pacientes de que falamos aqui.
O caso apresentado anteriormente ilustra bem o
risco que os terapeutas correm, quando se dedicam a aplicar as estratégias que
“aprenderam” na faculdade em pacientes que não possuem nenhuma condição de lidar
com um mundo organizado e voltado para o compartilhamento das prioridades.
Juntamente com a rigidez, podemos dizer que os transtornos de personalidade
trazem em sua apresentação clínica uma incapacidade generalizada de lidar com as
demandas sociais de qualquer tipo.
A Terapia Cognitivo-Comportamental pode ser
eficaz, sim, para o tratamento dos transtornos de personalidade. Entretanto,
fazemos aqui uma ressalva: o profissional que conduz a terapia tem que ser
flexível, paciente e criativo para apresentar uma forma de se relacionar que
suporte o que o paciente não suporta em sua vida quotidiana. De nada servirá,
dentro do consultório, uma repetição do modelo de relação que já é tão bem
conhecido pelo paciente do lado de fora.
Consideramos que a Terapia Cognitiva
Fenomenológica possa atingir resultados significativos em longo prazo, assim
como qualquer outra abordagem que se proponha a relativizar a teoria em função
da eficácia clínica.
O caso descrito a seguir ilustra algumas das
possibilidades que a Terapia Cognitiva Fenomenológica dos transtornos de
personalidade pode oferecer.
Caso G.
Paciente do sexo feminino, 49 anos, divorciada, sem filhos,
chega ao consultório com o encaminhamento do psiquiatra, após uma tentativa de
suicídio.
Aparentemente eutímica, o seu discurso vai aos
poucos demonstrando a morbidez de seu pensamento. Ao primeiro contato, mantém
uma postura formal e estudiosa da figura do terapeuta. Como a primeira
preocupação se relaciona à tentativa de suicídio, faço uma checagem de humor e
uma entrevista para iniciar algum tipo de relação terapêutica.
G. se mantém irredutível em sua ideia de que “o
que vale a pena na vida é morrer” (sic), sem apresentar qualquer outro sinal
significativo de transtorno depressivo. Num primeiro momento, sua patoplastia
poderia indicar um quadro de transtorno bipolar, posto que a paciente se
apresente com modos de grandiosidade e com dificuldade de escuta, além de uma
inadequação inconteste.
G. permanece com esse modo de se apresentar
durante o primeiro mês de terapia. Aos poucos seus modos vão cedendo a um nível
de adequação esperado, o que me faz suspeitar ainda mais de um episódio maníaco
em remissão. Contudo, o que se segue nos próximos encontros é um amontoado de
declarações que visam a chocar o terapeuta, onde a paciente se declara
perseguida por todos que estão ao seu redor, sua família e amigos
principalmente. A consciência do Eu se mantém preservada, a inteligência parece
ser acima da média, mas a capacidade de flexibilizar o pensamento e de se
colocar no lugar do outro são praticamente nulas.
Em pouco tempo, o médico e eu chegamos à hipótese
de um transtorno de personalidade. Essa conclusão determina o novo rumo do
tratamento, com redução das medicações e aumento da frequência de sessões de
psicoterapia para duas vezes por semana.
Com esse novo esquema, a paciente parece começar
a desenvolver uma vinculação afetiva com o terapeuta. Cabe ressaltar, no
entanto, que tal vinculação é terminantemente renegada por ela, que com
frequência dizia “não preciso e você e você é um terapeuta de merda” (sic).
Em algum tempo, foi possível
trabalhar a ofensa dirigida a mim pela via do que era importante pra ela e ela
fazia questão de declarar como seu maior valor: o respeito ao ser humano. A
partir de tal declaração, pude confrontar a sua ofensa “quinzenal” com sua
valorização do respeito. Em algum momento, com cerca de três meses de terapia,
perguntei por que ela escolhia estar com um terapeuta que considerava ruim. A
sua resposta foi algo como dizer que eu não havia entendido sua brincadeira e
não tinha senso de humor.
Nesse momento, pareceu-me
necessário ceder ao jogo que a paciente me convidava a jogar. De alguma maneira,
ela reproduzia comigo a relação que um adolescente desenvolve com um adulto que
precisa ser desafiado. Intuitivamente, comecei a dizer a mim mesmo que jamais
passaria a ideia de que eu poderia abandonar G., caso ela aprontasse alguma
coisa.
A terapia transcorreu por quatro
anos, antes de G. se mudar para outra cidade, a fim de ficar com a mãe doente.
Nesses quatro anos, muito pouca coisa foi modificada na forma de pensar e de
agir de G., mas ela desenvolveu pelo menos uma relação que era diferente do que
ela mantinha com o mundo lá fora. O principal ganho prático que ela mesma
relacionou à terapia foi a retomada de contato com duas amigas de colégio, com
quem rompera por ocasião de uma briga que ela, a paciente, provocara.
A tríade proposta por Young
também estava presente em G. e assim continuou. Em uma de nossas últimas sessões
ela me disse que a única coisa que eu fizera por ela fora dar certeza de que ela
“não seria abandonada por todos os que conhecia” (sic).
Para mim, este foi o melhor fechamento possível de uma
terapia naquelas condições.
Discussão
O transtorno de personalidade é um desafio para qualquer
terapeuta, não importa a experiência que tenha. Não podemos dizer que haja uma
fórmula para lidar com qualquer transtorno psicológico, pelo menos não na
Terapia Cognitiva Fenomenológica. Mas o transtorno de personalidade é o quadro
onde essa impossibilidade melhor se revela.
No caso de G. foi preciso algum
tempo para que a vinculação se estabelecesse. Tanto dela para comigo, quanto de
mim para com ela. Não me foi muito fácil atender essa paciente nos primeiros
meses. A atitude adolescente em uma mulher adulta é uma coisa cansativa só de
imaginar. No caso de G., isso era agravado por sua inteligência. A falta de
demonstração de afeto era uma constante. Muitas vezes, era mostrado por ela o
afeto contrário ao que realmente sentia, bastava que percebesse uma expectativa
minha.
Abrir espaço para meus afetos em relação a ela foi um dos
grandes aprendizados que experimentei com G., pois não pude segurar minha
discordância e irritação por algumas vezes.
Como conclusões possíveis,
podemos erigir a ideia de que o transtorno de personalidade pode ser tratado,
mas que deve ser observada a forma que a pessoa utiliza para estabelecer
relação com o mundo. Alguns questionamentos racionais simplesmente não fazem
efeito com pacientes tão rígidos e insensíveis aos códigos que adotamos para
nossos relacionamentos.
Uma das principais ideias para os
terapeutas que se aventurarem a trabalhar com transtornos desse tipo é a de que
não há como esperar uma relação terapêutica linear. Por isso mesmo, pensamos que
devem ser tratados de maneira diferente os movimentos antissociais que tais
pacientes frequentemente fazem.
Diferentemente da Terapia
Cognitivo-Comportamental, não nos parece crucial determinar o nome de um
transtorno de personalidade, pois a base do funcionamento da pessoa será a
mesma: com dificuldades interpessoais, falta de responsabilização pelas próprias
ações e rigidez patológica. Isso não significa que um paciente com transtorno de
personalidade deva ser tratado de uma única maneira, pois assim estaríamos
propondo o que sempre combatemos: a padronização do tratamento. A compreensão da
pessoa se faz necessária. O funcionamento patológico é inegável, mas existe um
aglomerado de mecanismos psicológicos que devem ser observados ali também.
A Terapia Cognitiva Fenomenológica dos
transtornos de personalidade procura a vinculação possível, visa a evitar o
desgaste excessivo do terapeuta, mediante uma compreensão engajada e ao mesmo
tempo preservada. O relacionamento entre terapeuta e paciente deve ser a
estratégia a ser utilizada para o tratamento.
Vale ressaltar ainda que a expectativa do
terapeuta pode jogar contra o tratamento. Esperar que um paciente saia de seu
consultório sem os sintomas que o acompanham por uma vida inteira é, para o caso
dos transtornos de personalidade, uma expectativa ingênua e fadada ao fracasso.
Podemos, sim, mostrar e construir com o paciente novas formas de se relacionar
com o mundo, como em qualquer outro quadro, sendo que nestes casos, essa
construção é via de regra muito mais trabalhosa e desgastante.
Referências Bibliográficas
Beck, J. S. Terapia Cognitiva para Desafios
Clínicos: o que fazer quando o básico não funciona. Porto Alegre;
ARTMED (2007).
Young, J. E. Terapia Cognitiva para Transtornos da
Personalidade: uma abordagem focada no esquema. Porto Alegre; ARTMED
(2003).