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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

GUIDO ARTURO PALOMBA Banalização dos crimes violentos



GUIDO ARTURO PALOMBA
Banalização dos crimes violentos
Referência na Psiquiatria Forense, Guido Arturo Palomba dedica quase quatro décadas de sua vida à definição de perfis psicológicos de criminosos. Nesta entrevista, ele aponta, entre outros aspectos, o despreparo dos profissionais que atuam na área

Por: Lucas Vasques | Fotos: Fabio Hurpia



Historicamente, um dos grandes mistérios da crônica policial a ser desvendado é como funciona a mente dos criminosos e o que os move a cometer atos de inimaginável violência. A definição do perfil psicológico de assassinos, estupradores e outros malfeitores de igual periculosidade sempre foi um desafio para a polícia e os profissionais que se dedicam ao estudo do psiquismo humano. Por isso, a Psiquiatria Forense ganha, a cada dia, mais importância na resolução desses crimes e na tentativa de evitá-los.
A descrição dos chamados crimes hediondos, praticados com requintes de perversão e crueldade, povoa os noticiários e deixa a sociedade atônita. A partir daí, torna-se imperiosa a participação desses especialistas na busca incessante por explicações para essa escalada de violência sem limites.
Entretanto, não é apenas na área criminal que a função do psiquiatra forense se faz fundamental. Em intrincados processos cíveis, o especialista tenta identificar possíveis deformidades mentais em pessoas envolvidas em crises matrimoniais ou guarda de filhos, além de litígios provocados por divisão de heranças.
Guido Arturo Palomba é um dos psiquiatras forenses mais conceituados do Brasil. Dedica sua vida a colaborar no esclarecimento de patologias psíquicas que justifiquem, ou pelo menos deixem mais claro, o que leva pessoas a cometerem ações delituosas de gravidade inexplicável.
O especialista nasceu em São Paulo, no dia 3 de outubro de 1948, e se formou em 1974, na Faculdade de Ciências Médicas de Santos. Com larga experiência na área, é a principal referência no setor para juízes, advogados e imprensa. Autor de mais de 10 mil laudos psiquiátricos sobre criminosos e do livro Tratado de Psiquiatria Forense, Civil e Penal (Atheneu, 2003) criou o termo “condutopata” por acreditar que “a patologia está na conduta”.
Guido Palomba tem ideias firmes e não se furta a comentar sobre qualquer assunto relacionado à sua área de atuação: “O despreparo na Psiquiatria Forense é generalizado”, avalia, com a credibilidade originária de seu conhecimento.
Como você define a psiquiatria forense e desde quando começou a ser utilizada?
Guido Arturo Palomba – A Psiquiatria Forense é a aplicação dos conhecimentos psiquiátricos às causas judiciárias. É usada quando há dúvida sobre a sanidade de algum indivíduo. O juiz precisa saber e, por isso, nomeia um especialista. Posso dizer também que a Psiquiatria Forense é a articulação do discurso médico com o discurso jurídico. É tão antiga quanto o Direito. Já constam informações sobre o tema no Código de Hammurabi, que data de 1.800 a.C. Lá, aparecem as primeiras articulações entre doença mental e disposição legal. Nesse código também está escrita a famosa Lei de Talião: olho por olho, dente por dente.
Você avalia como eficiente a formação dos profissionais que exercem essa atividade?
Palomba – Costumo dividir essa questão em dois aspectos: até os anos 2000 e depois dos anos 2000. Antes, a Psiquiatria Forense era a própria elite da Psiquiatria, contando com grandes profissionais. A partir de 1985, mais ou menos, começou o declínio da atividade, culminando com a grande decadência da Psiquiatria em termos mundiais. Isso se deve à proliferação desenfreada da indústria farmacêutica, com o uso indiscriminado de remédios, especialmente os antidepressivos. Hoje, a situação funciona mais ou menos assim: a pessoa tem um cachorro e ele morre. Nada mais natural do que ela ficar triste. O problema é que se for consultar um profissional é capaz de sair do consultório com um diagnóstico de transtorno bipolar. Então, o dito ‘especialista’ receita as famosas pílulas da felicidade.
A Psiquiatria Forense é a aplicação dos conhecimentos psiquiátricos às causas judiciárias. É usada quando há dúvida sobre a sanidade de algum indivíduo
Na sua atuação, como se dá esse link entre os aspectos médicos e jurídicos?
Palomba – Quando há dúvida a respeito da sanidade de um indivíduo, o juiz manda um perito examiná-lo. O profissional avalia sua imputabilidade, ou seja, descobre se quem praticou o ato entendeu o que estava fazendo. Se for detectado que o autor não é normal, passa a ser considerado um doente criminoso. O juiz, então, manda o malfeitor para um manicômio judicial. Posso citar dois exemplos de situações que demonstram essa ligação: uma pessoa prepara um testamento e morre. Um dos herdeiros se sente prejudicado e alega que o parente era doente mental à época em que elaborou o documento. O perito, por ordem do juiz, realiza uma perícia póstuma retrospectiva. Sempre se chega a uma conclusão segura. No caso de uma separação de casal, um acusa o outro de ser louco. O perito examina ambos e descobre qual dos dois tem condições de assumir a guarda dos filhos menores.
Você poderia revelar alguns erros de avaliação em processos criminais que viu durante sua trajetória?
Palomba
– Conheço alguns erros crassos. Um dos mais emblemáticos é o do bandido da luz vermelha. Ele ficou recluso durante 30 anos por medida de segurança. Após esse período, foi dado como normal por um perito. Resultado: foi morto em legítima defesa, pois atacou uma pessoa. Outro caso ocorreu com o monstro da Cantareira. Ele também foi considerado normal. Posto na rua, cometeu dois homicídios. Teve ainda o monstro do Trianon, que matava homossexuais na década de 1980. Foi colocado na rua e assassinou dez pessoas depois disso. E posso relembrar a história de Matheus Meira, aquele rapaz que metralhou e matou pessoas dentro de uma sala de cinema em um shopping. Ele, claramente, não é normal. Mas foi considerado assim e condenado. Passou dez anos na prisão comum e está prestes a sair. A possibilidade de reincidir é total.
Você acredita que os peritos deveriam ser punidos, em casos de erros graves?
Palomba
– Não existe punição. Mas, na minha concepção, é um erro médico e deve ser tratado como tal. O psiquiatra deveria ser denunciado ao Conselho Regional de Medicina. Depois de um processo amplo de defesa, se ele for considerado culpado, deve sofrer as punições. Afinal, devido a esse erro, vidas foram ceifadas.
O psiquiatra deveria ser denunciado ao Conselho Regional de Medicina. Depois de um processo amplo de defesa, se ele for considerado culpado, deve sofrer as punições
Os juízes também deveriam ser passíveis de punição, em caso de uma decisão equivocada que traga consequências?
Palomba
– Isso é um problema grave. O juiz não tem conhecimento específico sobre a matéria e, por isso, nomeia um profissional de confiança, teoricamente habilitado para exercer a função. Ele pode rejeitar o laudo, mas dificilmente isso acontece. O que ocorre, às vezes, é que o juiz é induzido ao erro por um laudo equivocado do perito.
Mas o juiz também pode se apresentar despreparado?
Palomba
– O despreparo nesta área é generalizado. Isso porque não se ensina Psiquiatria Forense nas faculdades de Direito e de Medicina. Em determinadas situações, os casos são claros, mas, devido a uma argumentação primária, são ignorados. Exemplo: alguns usam a tese de que se o sujeito planejou o crime é sinal que ele não apresenta problemas mentais. Não é verdade. Como costumo dizer, louco não é burro. Ele pode planejar a ação e, mesmo assim, ser doente. É o caso de premeditação mórbida, que tem como escopo final a prática do crime.
Na maioria dos julgamentos, a defesa tenta alegar insanidade do réu. Por que isso é tão explorado e como identificar que não há o problema para se evitar um erro na linha do julgamento?
Palomba
– Acredito que a defesa não procura a insanidade como estratégia do jeito que deveria. Porque muitos doentes mentais são defendidos como se fossem normais mentalmente. Isso evita a aplicação da medida de segurança, que, embora tenha um prazo inicial menor para ser cumprido, não tem um término definido, o que pode representar um período de encarceramento longo. Já o Ministério Público também não pede a insanidade, porque o prazo inicial máximo de três anos, que pode ser prorrogado, soa como uma derrota, pois a pena corporal comum tem chances de chegar a mais de 100 anos, embora não possa ser cumprida. Volto a citar o caso do Matheus Meira, condenado a 136 anos de prisão comum. Essa pena é mentirosa. Passou dez anos e está prestes a voltar ao convívio social. Se ele tivesse sido considerado insano, estaria em um manicômio judicial e dificilmente sairia em pouco tempo.

 http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/77/banalizacao-dos-crimes-violentos-referencia-na-psiquiatria-forense-guido-265052-1.asp