LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Fotógrafos normativos. Nós, professores penalistas, conhecemos a teoria do delito (enfocado como fato típico e antijurídico ou como fato típico, antijurídico e culpável), mas (de um modo geral) nada sabemos sobre a realidade do delito (Zaffaroni: 2012, p. 23 e ss.). Somos fotógrafos normativos, ou seja, analisamos o texto legal (a norma), a interpretamos e sistematizamos, mas não sabemos nada (ou quase nada) sobre a realidade criminal, que é objeto de estudo da criminologia.
Que fazemos os penalistas? Desde o primeiro ano da faculdade nós somos treinados para conhecer e interpretar textos normativos (normalmente os legais, dando-se pouca relevância para os constitucionais e internacionais). Sabemos combinar vários diplomas legais, mas não temos a mínima ideia de quantos delitos acontecem, quantos são noticiados, quantos são investigados, processados e castigados, como combater eficazmente o delito etc. Por meio da dogmática penal construímos a ciência do direito penal, mas tudo não passa de uma abstração (visto que o povo não sabe nada disso).
Médico que nunca examinou um paciente. A população desconhece os meandros técnicos e científicos do direito penal, mas sabem dos assassinatos, dos roubos, da corrupção etc. Estudamos o plano do dever ser e damos as costas (completamente) para o mundo do ser, da realidade, dos números etc. Separamos inteiramente as ciências da natureza das ciências culturais (como faziam os neokantianos, no princípio do século XX). Analisamos a teoria do crime sem ter nenhum contato com a realidade criminal. A incongruência é brutal: mais ou menos como se fôssemos médicos sem nunca termos examinado um paciente!
Função garantista da dogmática. Erro seria, no entanto, imaginar que a função dogmática (interpretativa) não possui nenhuma relevância. A boa aplicação da lei depende de uma adequada interpretação. Para que a aplicação do direito não seja uma loteria, não há dúvida que a função dogmática continua desempenhando excelente papel (de garantia, de evitar a improvisação, o abuso etc., como diz Gimbernat Ordeig). O penalista vai continuar sendo penalista, porém, para cumprir papel crítico, não há outro caminho que não se valer dos criminólogos, ou seja, dos dados da realidade, dos números etc. Raros são os penalistas que, ao mesmo tempo, desempenham o papel de criminólogo. Os dois, no entanto, estão fadados a andar juntos. Quem não tem visão apropriada da realidade não tem condições de cumprir o papel de penalista crítico.
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas redes sociais: www.professorlfg.com.br